quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Memória e existência

Tenho poucas lembranças boas do mundo depois dos desencontros que a vida me proporcinou. Haviam três meses de câncer no dia nublado de meus 70 anos. No banheiro, tenho numa cadência rotineira das necessidades e obrigações fisiológicas que o corpo proporciona, o contato com os azuleixos floridos, escolhidos à dedo nos tempos a dois. Nunca perco a hora da minha caminhada matinal, ter acordado tão tarde deve ter sido o impulso fulminante da idéia de dois dias atrás, onde resolvi retomar o propósito de nesta data recuperar a força espiritual tão extraordinária como incontrolável de uns anos atrás.

O sacrossanto jornal entregue todos os dias, espelha mais um capricho ordeiro das horas que me destraio. Nunca conto a ninguém que a esta altura pouco me importam as notícias. Do mas, o chá quente com uma pequena fatia de limão faz toda a diferença. Curiosamente não me aflige a idéia de que se você não têm filhos, a sua ausência para o mundo será completa depois da morte. Para aquela data decidi me autodestruir sozinho num porre de baronesa e outros destilados baratos.

Não tenho dúvida de que a coisa que mais me repudia da minha personalidade é a lúcidez mesquinha que me impediu de ser mais feliz nos anos anteriores. Ainda que descubram tanta coisa, hoje não me acho mas em posição confortável para tal deleite. Me atormenta apenas as noites que trai o carinho por cansaço, os lugares que não vi, os livros que deixei de ler, algumas pessoas que mereciam uma parcela maior e mais sincera do meu sorriso sempre arrogante. É o tempo que nos mata.

Quando relógio pontuou três e 45 da tarde eu retornava da rua. A boininha opaca, minha bengala de praxe, o caminhar vagaroso de quem pouco se importa com as coisas. Na sacolinha todos os ingrentes proibidos pelo meu médico, um garoto novo, formado em medicina a pouco tempo, cheio de sonhos e que um dia iria entender os atos pecaminosos da restrição que me receitou. Por sorte o rúgido pagão dos deuses antigos preconizavam chuva.

Quando ela caiu, estava na terceira dose de baronesa, o último trago do segundo fumo e com uma sensação maravilhosa de estar vivo desde de que fiquei sozinho. Porque há certas parcelas do amor que a gente só entende com a ausência. Posso dizer tranqüilamente que numa ocasião destas, a água purifica. Acabei em meio da chuva, onde pingava vida em cada parte velha do meu corpo. Rolava em meio das bromélias que há tempos havia me esquecido. Lá fora, o mundo havia parado. Eu iria passar...





2 comentários:

  1. "Porque há certas parcelas do amor que a gente só entende com a ausência."

    sinceramente brilhante!
    =)

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  2. Penso como ela, ai em cima. Genialmente simples e profunda essa frase.


    Você está na minha lista de escritores favoritos, com certeza.

    ;)

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